sexta-feira, 4 de abril de 2008

Disciplina escolar, penas e castigos



Não existem quaisquer registos que nos dêem conta de que, nos primeiros anos da existência do LNF, os alunos se tenham insubordinado nas aulas ou fora delas, assim como qualquer outra incorrecção. Mas, à medida que a frequência do Liceu foi crescendo os problemas de indisciplina foram surgindo, ou, pelo menos, foram sendo registados. Trata-se de uma situação lógica se considerarmos que, uma década após a instalação do LNF, o seu espaço físico se manteve igual enquanto que a sua população escolar praticamente duplicou. A insubordinação agravou-se, dentro e fora das aulas, levando o corpo docente a ter de tomar medidas disciplinares excepcionais. O conselho de professores procurou fomentar o sucesso escolar e a boa educação dos estudantes através da dedicação, do rigor e da disciplina. Daí resultou a necessidade de premiar os alunos que se distinguissem mais em todos estes deveres escolares, e, igualmente, censurar os que deles se tivessem afastado3. Então, decidiu-se que nas cerimónias de abertura, assim como nas de encerramento de cada ano escolar, se observasse a disposição do art. 10.º do Regulamento Policial (RP) que determinava premiar o mérito de alguns alunos e censurar o demérito de outros, na presença do corpo docente e discente, segundo as notas lançadas no Registo de Frequência, Aplicação e Comportamento. Aberta a sessão, o secretário fazia a chamada de todos os alunos matriculados, anotando os faltosos, depois lia o RP com as emendas ou alterações que tivesse sofrido, em virtude das deliberações do conselho, ao longo desse ano. De seguida, o reitor explicava, num discurso breve, o objectivo da sessão. O secretário tomava a palavra de novo e fazia a leitura de duas listas nominais extraídas do Registo de Frequência, Aplicação e Comportamento, primeiro a dos alunos que mereciam censura e logo a dos que mereciam louvor. O reitor voltava a intervir mandando os alunos da primeira lista levantarem-se e assim continuarem até ao final da sessão. Seguidamente, admoestava-os em nome do conselho de professores e exortava-os a emendarem o comportamento. Os alunos da lista dos que mereciam louvor – os «mais dignos» – eram chamados um a um, recebiam das mãos do reitor o título de distinção e tomavam assento num banco de honra. A sessão era encerrada com uma alocução do reitor sobre a moralidade desse acto policial. Desde a fundação do Liceu, houve por parte do corpo docente a preocupação em combater os castigos corporais, por se considerar um erro grave do ensino, que só servia para desmoralizar os alunos. Aboliram-se, então, todas as punições físicas, prática pedagógica que tinha sido costume no antigo «Pátio dos Estudantes». O RP passou a determinar que as penas morais substituíam as corporais e, por conseguinte, cada professor devia ter junto de si um caderno onde registava a aplicação, o comportamento e a frequência dos alunos, durante o tempo da sessão. Estas notas seriam mais tarde discutidas e apreciadas pelo conselho de professores, em sessão ordinária mensal, sendo registados os casos considerados graves no Livro de Registo de Aplicação e Comportamento dos Alunos do Liceu Nacional do Funchal. No final de cada trimestre, todo o «corpo escolástico» (professores e alunos) reunia-se em sessão geral e depois da leitura de duas listas nominais, extraídas do mencionado registo, o reitor ia distribuindo, em nome do conselho, o louvor ou a repreensão consoante cada caso. Tal como acontecia nas sessões solenes de abertura e fechamento das aulas, no início e final de cada ano lectivo, a sessão terminava com uma alocução solene que o reitor fazia sobre a moral, causando, segundo o seu próprio relato, «um efeito de contrição nos ânimos dos alunos». Sempre que ocorriam casos de insubordinação considerados graves, o conselho de professores reunia-se de emergência, nos dias imediatos ao ocorrido, de modo a resolver o caso. Apresentada a queixa pelo guarda, pelo professor visado, ou por um aluno, era aberto um auto de investigação. O aluno acusado era constituído arguido e tinha vinte e quatro horas para apresentar a sua defesa por escrito. De seguida, era submetido a um interrogatório dirigido pelo reitor, com a finalidade de o confrontar com a verdade dos factos. Posteriormente, o conselho julgava o caso em conformidade com a lei e de acordo com as disposições do RP do Liceu, ficando todo o processo registado em acta. O conselho de professores, na sessão de 8 de Março de 1849, ponderando que nenhum dos encarregados de educação se indagava a respeito do estado de aplicação e comportamento dos estudantes matriculados, nas diferentes cadeiras, e julgando ser essencial para a boa disciplina, aqueles terem notícias frequentes do modo como os seus subordinados desempenhavam os seus deveres escolares, deliberou que, no final de cada semana, os professores dariam aos alunos que tivessem sido assíduos, aplicados e bem comportados um bilhete de aprovação para ser apresentado aos encarregados de educação. A omissão de tal bilhete indicaria que o aluno não tivera um bom desempenho dos seus diversos deveres no decurso da semana5.No arquivo do LNF encontram-se inúmeros registos minuciosos de ocorrências de indisciplina, desde os mais insignificantes aos de maior gravidade, que foram levados a conselho escolar6. As ocorrências mais frequentes eram brigas entre alunos, desrespeito pelos professores e pelo guarda. Chegavam, com alguma frequência, à reitoria do Liceu, ofícios provenientes do Administrador do Conselho, participando queixas de vizinhos e de transeuntes que acusavam terem sido tratados insolentemente pelos estudantes. Na maior parte dos casos era difícil encontrar os culpados e admoestá-los, por não estarem devidamente identificados, e a reitoria procurava simplesmente apertar, na medida do possível, a vigilância. Nos casos de maior gravidade instaurava--se um processo de investigação, conforme já referimos, a fim de se apurar a verdade e punir os infractores. Na sessão do dia 30 de Novembro de 1848, foi levado ao conselho de professores, pelo reitor, um auto de investigação, aberto pela administração do Conselho, do qual constavam vários distúrbios que alguns estudantes tinham provocado no pátio do Liceu enquanto decorriam as aulas, assim como o desrespeito de um aluno ao professor das primeira e segunda cadeiras, no decorrer de uma das suas aulas e insultos do mesmo aluno ao guarda do Liceu7.Também chegavam à reitoria muitas queixas verbais de professores que acusavam alguns dos seus alunos de terem sido indisciplinados durante as aulas, desrespeitando o próprio professor ou os colegas. Por vezes, havia denúncias de agressões físicas praticadas contra o guarda, por alunos que já não estavam a estudar, por terem perdido o ano por faltas, ou por terem sido expulsos. Havia ainda muitas agressões físicas entre colegas, provavelmente os alunos mal comportados, para se vingarem das admoestações do reitor e da vergonha que passavam nas sessões solenes, insultavam e batiam nos «mais dignos».Um dos casos de maior insubordinação ocorreu no dia 23 de Novembro de 1847, em que um grupo de alunos inutilizou a fechadura das latrinas, impedindo a sua utilização, amarrou a porta do pátio com arame e obstruiu a fechadura com alcatrão, para interceptar a entrada na escola e a saída dos colegas e dos professores que estavam em aulas, entre o meio-dia e a uma da tarde. Foi aberto um processo e realizada uma investigação, porém, na impossibilidade de se identificar os autores, o auto de investigação foi arquivado8.Para por cobro a todas estas situações de insubordinação, o conselho resolveu redigir um edital e afixá-lo nas aulas. A informação alertava para as graves punições de que seriam alvos todos os alunos que, dentro do Liceu ou nas suas imediações, causassem distúrbios. O documento proibia a permanência dos alunos no pátio ou no portão do Liceu, para além das horas em que tinham aulas e interditava o uso de bengalas, chicotes, ou de qualquer arma defensiva ou ofensiva9.O guarda devia cumprir as determinações do conselho em observância das atribuições que lhe eram conferidas pelo regulamento de 9 de Setembro de 1863, devendo dar conta na secretaria para que esta, por sua vez, comunicasse à reitoria qualquer transgressão disciplinar, sob pena do mesmo guarda ser imediatamente suspenso do exercício das suas funções. As deliberações tomadas pelo conselho foram sempre demasiado severas, pois na maioria dos casos os alunos foram expulsos das aulas por mais de um ano lectivo. Verificámos, porém, que com o decorrer dos tempos, embora as normas continuassem as mesmas (o RP sofrera apenas alguns ajustes), as penas atribuídas, nalguns casos, tornaram-se mais brandas. Por exemplo, no início dos anos 50, o professor da terceira cadeira pediu a expulsão do Liceu dos alunos, que desobedecendo às ordens do guarda para se retirarem do pátio, perturbavam as aulas10, enquanto que, nos anos 70, um aluno que tinha agredido fisicamente, com gravidade, um colega, no pátio da escola, foi expulso das aulas apenas por cinco dias, por ser considerado de comportamento e frequência irregulares11.No decreto de 1836, Passos Manuel remeteu para os regulamentos policiais de cada liceu, sob a superintendência da Direcção Geral de Instrução Pública (DGIP), tudo o que dizia respeito à ordem e à disciplina. Em 1844, Costa Cabral mantém a mesma disposição e somente o diploma de 1860, de Fontes Pereira de Melo, dedica um capítulo inteiro à atribuição de penas disciplinares, que surgem referenciadas pela seguinte ordem de gravidade: primeiro, repreensão dada nas aulas pelos professores, por pequenas irregularidades disciplinares e por negligência dos alunos em relação aos seus deveres literários; segundo, repreensão dada pelos reitores e mandada ler em todas as aulas, motivada por irregularidades em várias disciplinas frequentadas e por desrespeito das regras do RP; terceiro, expulsão temporária dos liceus, por rela-xações e ofensas à moral e disciplina dos liceus, podendo ir até três anos; quarto, expulsão perpétua, aplicada a alunos incorrigíveis, devendo ser ratificada pelo Governo, ouvido o Conselho Geral de Instrução Pública, ficando os alunos expulsos de todos os liceus do país.Os diplomas legais que surgiram a partir de meados do século (1863 e 1873) continuaram a incluir sanções disciplinares para os alunos que cometessem infracções. O mais penoso dos castigos era a expulsão do liceu, devendo ser aplicado somente em casos considerados muito graves e incorrigíveis. A repreensão oral e a marcação de faltas eram penas mais leves e aconselhadas a ser aplicadas aos transgressores das regras básicas de disciplina. Os decretos da década de oitenta, de José Luciano de Castro, mantiveram as mesmas disposições sobre as penas disciplinares a aplicar aos alunos. Reconhecemos que houve, por parte do legislador, uma maior ponderação no que se refere à atribuição de penas e de castigos, porém os conselhos liceais mostravam--se ainda demasiado intransigentes e das suas decisões continuavam a transparecer pouca consciência pedagógica. O último decreto que regulamentou o ensino liceal, no final do século XIX, da autoria de João Franco/Jaime Moniz, previu penas idênticas ao do diploma que o precedeu, mas deu maior destaque às repreensões e relevou a pena de expulsão para casos de extrema gravidade, mesmo assim com direito a recurso por parte do aluno acusado, indo ao encontro de uma nova perspectiva pedagógica que se iria desenvolver ao longo do século seguinte.


Texto adaptado de Hélder César Spínola Teixeira
«O Liceu Nacional do Funchal (1837-1900), Subsídios para a sua história»
(Dissertação de Mestrado defendida na UMA no dia 25 de Setembro de 2006)

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