quarta-feira, 2 de julho de 2008

Testemunhos do Liceu: David Pinto Correia




Espaço multicultural mas, sobretudo, testemunha do processo de socialização e de vida, a Escola assume um papel incontornável na vida de todos nós. Revivemo-lo nas conversas do quotidiano, actualizando episódios pitorescos, eternizando espaços, personagens e modos de aprender e ensinar…É da escola que temos cada vez mais saudade, passado o tempo do estudo e da alegre camaradagem, o que nos faz sentir, como o poeta, “raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”O Liceu orgulha-se de ser esse espaço extraordinário de vivências e emoções de milhares de estudantes madeirenses. Quem são? Que recordam?

Nome: João David Pinto Correia
Idade: 68 Anos
Profissão: Professor Universitário (Universidade de Lisboa – Faculdade de Letras)
Área de formação: Letras / Humanidades


O Lyceu – Diz-se Liceu, vem a saudade. Que importância teve o Liceu na sua vida?
David Pinto Correia – Antes de mais, gostava de reconhecer que estas respostas foram elaboradas de modo muito espontâneo, como uma quase evocação imediata do que ainda ficou desses todos anos de Liceu (sete anos); são, portanto, breves notas que deveriam merecer mais reflexão… No entanto, devo acrescentar que quis desenvolver as duas primeiras questões, reservando-me o direito de ser muito sucinto em relação às duas últimas. Do facto peço perdão.
Transitando da Escola Primária (a minha foi a de S. Gonçalo, com professores excepcionais, principalmente o Prof. Mendes), o Liceu foi naturalmente outro mundo: aulas diferentes, com seis tempos lectivos diários, vários docentes, instalações muito boas. A princípio um pouco confuso com a mudança, logo me fui habituando e foi no Liceu de Jaime Moniz que passei esses sete anos lectivos.
Em primeiro lugar, creio que foi aí que tive pouco a pouco a aprendizagem da camaradagem e da amizade. Os colegas e amigos do Liceu ficaram, de facto, para toda a vida; claro que nos lembramos principalmente dos do sétimo ano, em que éramos finalistas e, ao tempo, quase todos seguiam para o Continente. Mas esses que chegavam ao fim dos estudos do secundário, com alguns mais que vinham de fora (de outros estabelecimentos de ensino ou mesmo de outras partes do território nacional) eram, e se não tinham perdido nalgum ano, quase os mesmos do 1º ano (das diferentes turmas). Deste modo, podemos lá de tempos a tempos juntar-nos ainda em convívio, mormente em jantares de Natal ou de comemoração de uma data importante (como no ano passado, a de 50 anos de fim do curso liceal).
Depois, penso nos meus professores, avalio-os após tantos anos: há aqueles que nos marcaram pelo saber e capacidade pedagógica, há também outros (é evidente que os anteriormente referidos podem estar incluídos neste grupo) que nos revelaram a grandeza humana e simpatia, há ainda todos aqueles a que faltavam capacidade pedagógica, mas tentavam cumprir uns com esforço, outros mais desajeitadamente, a sua tarefa de docentes. Lembro, como grandes mestres ou como docentes que muito me influenciaram, o Dr. Joaquim Lufinha, de Português (a quem devo muita da minha formação), meu professor durante cinco anos, e, já no 3º Ciclo, o Dr. Emanuel Paulo Ramos, meu grande tutor no estudo da Literatura Portuguesa, o Dr. Clementino de Sousa, de Ciências Naturais (homem difícil, mas pedagogicamente admirável), o Dr. Fonseca, a Dra. Judite e a Dra. Conceição, estes de Matemática, mas também a Dra. Maria Ângela, de Desenho e Trabalhos Manuais (disciplinas em que não tinha nenhuma dificuldade e sempre com notas bastante razoáveis), assim como, já mais no 2º ciclo, a Dra. Helena Pires de Lima, de Inglês, o Dr. Canedo, de Ciências, o Dr. Saraiva, que nos dava aulas bem práticas de Física e Química, e, já no 3º Ciclo, o Dr. Cardeal, que me formou muito rigorosamente em Latim e Grego (não esquecendo não as lições, mas a avaliação dos meus exames de sétimo ano, a Dra. Margarida Morna), o Dr. Figueiredo (e fico espantado por ele nos ter leccionado Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação, com um rigor extraordinário, o que, na última dessas disciplinas, me levou a tirar 19,8 no exame final do 7º), o Dr. Horácio Bento de Gouveia, em Geografia e em Filosofia (nesta disciplina, só durante um ano), ou a Dra. Eulália de Sousa, em Francês (no Preparatório), ou a Dra. Adelaide Saraiva, em Francês, no 3º Ciclo, e, por outras razões, bem vivas na minha memória, o Dr. Figueira César (eu era aluno do afamado 4º C).
Gostava também de mencionar professores que, não tendo missão considerada de co-nhecimentos fundamentais, me tornaram diferente e me orientaram no sentido de uma mais completa formação humana: são eles os professores de Religião e Moral, na altura o Padre Manuel Ferreira Cabral, mais tarde Arcebispo de Braga, e o Padre Mata, que teve profunda influência em muitos dos jovens dos anos 50, sobretudo através da Juventude Escolar Católica e das Conferências de S. Vicente de Paulo; de Canto Coral, entre eles o nosso “Capitão” e o Cónego Agostinho Gonçalves, que teve a iniciativa do Orfeão do Liceu (lembro-me da nossa récita no átrio-museu, com, entre outras composições, o «Va pensiero” de Verdi); e de Educação Física, com a ginástica e jogos, com o Dr. Santos Lã e, depois, o Prof. Ferreira. A todos eles devo muito, quase tudo em determinados aspectos…
Curiosamente, também poderia falar dos castiços funcionários que nos orientavam pelos corredores e pátios (o Sr. Plácido, por exemplo, com o seu famoso chaveiro em cima das nossas cabeças…).

O Lyceu – O que mais o marcou durante os anos de frequência do Liceu? (pessoas, espaços, ambientes, etc…)
David Pinto Correia – Serei o mais resumido possível. E obrigado por me ter sido suge-rido um quase plano.
Quanto a pessoas: muitas delas já ficaram enumeradas na resposta anterior. No entanto, gostaria de ressaltar algumas que tiveram uma grande importância na minha formação, não só em preferência da minha futura actividade científica e académica, mas também humanista. Na escolha da minha carreira, e principalmente para a minha profissão de professor universitário e, de certo modo, escritor, quero salientar não só os professores Dr. Lufinha e Dr. Paulo Ramos, mas também o acompanhamento sempre prestado pela esposa, Dra. Marília Ramos; no entanto, não esqueço as conversas, por vezes nos corredores, sobre estes assuntos das “Letras”, com os Drs. Horácio Bento de Gouveia, Carlos Lélis, Margarida Morna e Alfredo Nóbrega. Na sensibilidade à pedagogia, alguns destes agora citados, mas também, na condução das aulas, os Drs. Clementino de Sousa e Helena Pires de Lima. Noutro plano, há que reconhecer a influência profunda dos Padres (na altura) Ferreira Cabral e Mata.
Espaços: foram as salas de aula no rés-do-chão da ala oriental do Liceu, junto do pátio dos rapazes: todas aquelas salas de impecável aspecto (pelo menos na altura e creio que ainda o mantêm) e os agradáveis intervalos e mesmo os tempos livres (alguns devi-dos às compreensíveis faltas dos professores): tempo de jogos, brincadeiras, tropelias mesmo, importantes para os adolescentes que éramos. Mas também a sala de Ciências Naturais, nas aulas do Dr. Clementino, com os desenhos e esquemas que ele escrevia no quadro, o contacto com o esqueleto, a observação nos microscópios (e daí data o meu interesse por este grande campo, que vai dos animais às plantas; até a mineralogia me fascinava). No campo das Ciências, também as nossas aulas nos laboratórios de Física e Química, para acompanharmos as experiências (era já um ensino prático na medida do possível, com os instrumentos da altura, mas sempre gratificantes…).
As aulas de Português, com a leitura de alguns clássicos sempre me seduziram, desde os textos dos compêndios e antologias (então, eram os “aprovados como livros únicos”) e, depois, a descoberta de obras como O Bobo, Lendas e Narrativas, Auto da Alma e outros, mas sobretudo Os Lusíadas e a Lírica, de Camões. Quanto a Os Lusíadas, o docente, o já mencionado Dr. Lufinha, pôde com muita competência levar-nos a compreender o poema e motivar-nos para a sua leitura nas partes que teríamos de ler e convencer-nos de que uma tarefa que muitos criticam, como fastidiosa, a divisão de orações, foi maneira magnífica de vir a descobrir o sentido mais profundo da obra. Fiquei-lhe muito grato…Sobretudo pela forma como soube tornar a tarefa aceitável e mesmo fascinante.
Memórias há que posso registar como parte da minha experiência que, talvez para muitos hoje seja considerada como indisciplina, e só para discriminar algumas, penso em certas aulas em que havia infracções, que actualmente penso foram exageradas, no entanto importantes para a nossa / nossa afirmação. Cito as que se passavam na Turma 4º C, com grandes incorrecções, de carácter indisciplinado, e que nos ficaram como momentos centrais da nossa vivência. Hoje, com as experiências e situações outras que vejo estampadas em jornais e televisão, considero tais momentos como significativos: as brincadeiras que, por vezes, roçavam o desrespeito pelo professor constituíam situações negativas sem dúvida, por isso sancionadas, mas, por outro lado, humanas, até porque o docente em causa, de Inglês, embora protestando, as consentia e mesmo quase as provocava.
E que dizer, neste contexto, das nossas idas à mercearia do outro lado da rua, para beber uma laranjada ou munirmo-nos de feijões, arroz, grão, etc., para as «malandrices» de adolescentes com sangue na guelra, sobretudo quando, na transição para o pátio dos maiores, víamos o nosso estatuto melhorado, já como jovens mais crescidos.
Um aspecto gostaria de salientar: não podia haver no nosso código de conduta qualquer tolerância para as denúncias: aquele que as fazia era um “queixinhas”. Hoje, parece que a denúncia, a queixa se tornaram quase obrigatórias. A minha geração não as suportava, nem ainda as suporta (principalmente da parte dos “bufos”) e ai daquele que se atrevesse a fazê-las.
Até as actividades de canto, de exercícios físicos no estádio, nos campos de futebol ou de basquetebol, ficaram na saudade de um aluno como eu.
E, a propósito, lembro que fui um aluno médio, senão medíocre durante os primeiros anos: no entanto, no momento de reagir para aumentar o rendimento lá estava eu a tentar recuperar com coragem, estudo… Quase ia perdendo o 2º ano, quando me faltavam notas para completar a soma dos 19 valores globais nos três períodos; como exemplo, o Dr. Clementino deu-me em Ciências Naturais, 10 no 1º período, 7 no 2º, e trabalhei para o 12 do 3º. E verifiquei como um docente exigente como ele foi sério e íntegro. Pouco a pouco, fui melhorando; no entanto, tive dificuldades na Matemática no 2º ciclo. A docente, a Drª Conceição, deu-me negativas no 1º e 2º período, mas, com esforço, consegui ultrapassar a dificuldade. Tendo sido dispensado em Letras, com 16, tive da fazer provas orais nas Ciências, e o grande problema era Matemática; consegui e a professora, muito exigente e que não era para brincadeiras, foi mesmo, com algum receio meu, a minha examinadora na prova oral dessa disciplina; apertou-me quanto pôde e va-lorizou-me com um 16. Confessou-me ela no final das provas, já cá fora, e, visto que regressava a Lisboa, que o meu percurso seria uma das suas melhores recordações do Liceu. Muito grato lhe fiquei por esse sincero cumprimento.
No 3º ciclo, já foi tudo bem encaminhado: consegui das melhores notas, porque estudei muito (diziam que eu era mesmo um dos “marrões”), tendo conseguido a melhor classificação do 7º ano com a melhor média de 17,6 ou 17,7, o que me levou a ter o 1º prémio do Liceu e da Câmara Municipal do Funchal. Foi recompensa do trabalho, mas também a resposta ao excelente trabalho dos meus professores. Foi sobretudo um dos melhores convites a prosseguir no Superior.
Mais duas breves notas: a gratidão para com o casal dos excelentes professores Paulo Ramos (marido e mulher), que, sabendo que eu ia para Filologia Românica, puseram ao meu dispor a sua magnífica biblioteca, recebendo-me em sua casa e incentivando-me à pesquisa pessoal; e, recuando no tempo, também todo o meu reconhecimento pela Dra. Maria Augusta Drummond, a primeira mulher licenciada da Madeira em universidades portuguesas, embora em Farmácia, senhora admirável de saber e enorme pedagoga, minha vizinha no Ribeiro Seco, S. Gonçalo, que, com explicações em várias disciplinas, me possibilitou (a mim e a outros meus colegas) um melhoramento e sucesso contínuo em matérias que nos eram mais difíceis.

O Lyceu – Como vê a Educação hoje?
David Pinto Correia – Repetindo o lugar-comum, a Educação é o fundamento do Cidadão e do Homem. Creio que, nos meus tempos de Liceu, e não querendo dizer que na época é que estava tudo bem, houve programas, agentes e meios que, para a prática de conhecimento e de pedagogia então possíveis, confluíram numa acertada adequação para a formação dos jovens.
O que pode chocar-me hoje em dia é o contínuo experimentalismo que, neste campo, se verifica desde há anos: uma incrível preocupação com a tecnocracia, com tudo orientado por decretos-leis, com regulamentos e instruções, com tudo formatado por uma burocracia desumanizada. Não posso deixar de reconhecer que a Educação terá de exigir a colaboração da Escola, da Família e da Sociedade…

O Lyceu – Na sua opinião, de que modo as novas tecnologias são uma mais-valia para a aprendizagem do aluno?
David Pinto Correia – São, sem dúvida, uma mais-valia, como auxiliares da aprendizagem, mas, nesta questão, será necessário encontrar um equilíbrio: não só o computador, mas também a biblioteca; não só a calculadora, mas ainda a tabuada; não só o jogo ou o divertimento ao serviço do conhecimento, mas também o esforço e a exigência do trabalho intelectual.
Na minha opinião, a Educação deve conjugar instrução (com literacia inclusive) e civismo (cidadania inclusive), com liberdade e responsabilidade. As novas tecnologias têm de ser integradas nesta vasta concepção.

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